La Marca Editora

Militante memória gráfica

“Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio”.

O livro Gráfica Política de Izquierdas: Argentina 1890-2001, editado pela La Marca, em 2006, nos mostra não apenas o que esquecemos, mas o que, talvez, a maioria de nós nunca veio a conhecer. O livro apresenta um registro gráfico de 110 anos de cartazes, almanaques, jornais, periódicos, livros e panfletos, entre outros materiais, criados pelas esquerdas ou para as esquerdas argentinas. Essa publicação faz parte da coleção Registro Gráfico, cujo objetivo, é “dar testemunho bibliográfico de um patrimônio visual sobre o qual raramente nos detemos”.

Bilíngüe (espanhol/inglês), conta com uma apresentação do editor Guido Indij, e com os textos 111 años de gráfica política de izquierdas de Horacio Tarcus, e Gráfica e ideologia política. Con la excusa de los logotipos zurdosde Norberto Chaves; além de uma cronologia elaborada por Adriana Petra que relaciona o desenvolvimento dos movimentos de esquerda, a partir de 1864, aos fatos políticos e sociais em nível mundial, diga-se de passagem: um belo trabalho de registro.

Como o próprio título afirma, o livro trata de um recorte estreito e preciso dentro das artes gráficas, isto é, a gráfica política das esquerdas na Argentina. É possível observar, nesse recorte, a recorrência de símbolos, ícones e alegorias que conformam um ideário gráfico espontâneo, uma vez que, como afirma Norberto Chaves: “nem todas as plataformas político-ideológicas têm definido um manifesto estético”.

A maior parte das imagens reproduzidas no livro foi cedida pelo CEDINCI (Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierda en Argentina), da qual Tarcus é diretor. Muitos desses documentos foram gestados na clandestinidade, produzidos com recursos escassos e impressos sobre papéis baratos, sempre com vistas a uma maior tiragem. Não foram, obviamente, criados pensando em sua preservação, o que torna complicada a manutenção desse acervo. Esse aspecto, em particular, faz ressaltar os méritos do trabalho do CEDINCI e também dos colecionadores privados que cederam imagens para o livro.

Tarcus ressalta que as esquerdas, “filhas rebeldes da modernidade” não são pura idealização e que sua ação tornou-se mobilizadora – e aí reside um dos objetivos desse material – quando, no início do século XX, seus ideais foram capazes de “encarnar-se em forças sociais”. Para que se consumassem, foi necessário um processo de gestação de símbolos, imagens e alegorias capazes de comunicar eficazmente suas idéias e valores às massas.

Dentre as imagens mais freqüentes encontramos as alegorias (do trabalho, da aurora e da luz); as imagens do trabalhador nas forjas, repousando com o martelo na mão ou instruindo-se com um livro à luz de uma vela. Outro motivo sempre presente é a mãe proletária com seu bebê nos braços, bandeiras vermelhas, trabalhadores e trabalhadoras marchando para um destino venturoso, em geral representado por uma aurora. Na coleção de imagens mostradas no livro, algumas de surpreendente qualidade formal e plástica, predominam o vermelho, preto e branco, como seria de se esperar.

Demonstrando grande domínio do assunto, Tarcus explana o tema da gráfica de esquerda com desenvoltura. Ele aponta com clareza o desenvolvimento de aspectos gráficos e históricos, como por exemplo, o predomínio das cores preta e branca, na década de 1920; a iconografia da era comunista, nos anos 1930, quando a cor vermelha passa a ser usada com grande força; o início da “nova esquerda”, a partir da revolução cubana de 1959, e o surgimento de seu ícone máximo: Che Guevara com a boina e a estrela de cinco pontas na célebre fotografia de Alberto Korda; o período recente da ditadura militar argentina (1973-1983); e chega até o ano de 2001 quando surgem os grafites e o estêncil, além, é claro, dos panelaços.

As imagens seguem uma linha cronológica, o que favorece muito a compreensão dos desdobramentos e das modificações que sofreram ao longo do tempo. Nas imagens do começo do século XX predominam as ilustrações que mostram de forma literal os ideais da luta e do proletariado. À medida que se avança, e especialmente a partir dos anos 1960/1970, as expressões passam a ser mais diversificadas, incorporando fotografias, caricaturas e, por vezes, o humor.

Norberto Chaves, importante teórico da imagem e da comunicação, se desculpa antecipadamente, já no título de seu texto: “Con la excusa de los logotipos zurdos” (Com a desculpa aos logotipos canhotos), pela polêmica que levanta. Ele constata, de início, a seguinte oposição: “por um lado o trabalho [gráfico] é o que se vê, não esconde nada atrás de si, não é a expressão ou o fruto de qualquer processo ou circunstância econômica ou social” – o que não deixa de ser um olhar idealista, cujo princípio da autonomia projetual transparece de imediato. Por outro, ele afirma a redução de todos os trabalhos culturais “à mera expressão simbólica de sua condição material de existência”, colocando em jogo a questão do projeto como representação. Entre a questão da autonomia ou da representação ele fica com as duas e com nenhuma, e procura mostrar que essa oposição traduz um dilema que tem sua natureza contraditória amparada em duas fontes objetivas: na “natural polissemia do fato cultural” e na “insuperável incoerência do espírito humano”.

A partir dessa discussão, analisa o material em questão afirmando que existe, implicitamente, uma expectativa de que esse conjunto de imagens manifeste algo próprio da esquerda e, portanto, diferente da direita; no entanto, conclui que essa compilação “frustra toda a esperança” e “demole a hipótese da ‘gráfica como expressão da ideologia política’”. Em seu texto, ao mesmo tempo complexo e sutil, Chaves a confusão que pode existir entre a “ideologia da organização” e a organização em si – na qual convive-se com grande heterogeneidade de variantes e matizes ideológicos. Ao propor o exercício de despir os trabalhos apresentados no livro de suas significações, Chaves constata que o que resta, visualmente, são as mais diversas retóricas: “desde a frieza signalética até o heroísmo wagneriano, desde a ingenuidade naïf até o maneirismo Art Nouveau, desde o despojamento racionalista até os socos tipográficos do construtivismo”.

Ele deixa claro que não se trata de “relativismo” e sim de uma lúcida exposição de “verdades opostas e igualmente válidas até novo aviso, e sem perder a razão”. Saudavelmente provocador até o final, ele conclui:“Pensar é um esporte de risco”!

De volta à introdução, o editor informa que o livro foi concebido apenascomo homenagem às esquerdas, e pede complacência aos leitores por ser“um pequeno livro de artes gráficas”. Isso é minimizar a importância desse registro e da possibilidade de acesso que ele abre a essa visualidade. Indij, com muita justiça, presta tributo aos colecionadores, ao reconhecer seu importante trabalho de conservação, que permitiu documentar esse material, apesar das difíceis condições de produção e circulação às quais estiveram sujeitos.

Por fim, Indij toca numa questão fundamental dessa gráfica: a emotividade. As imagens apresentam em alguma medida o espírito da luta que move as esquerdas. São, como ele afirma, “pequenos gestos, aparentemente isolados, conformam um delta, filtrados em um discurso visual que põe o dedo em nosso olho, para chamar nossa atenção e nos tirar de nossa ‘paz burguesa’”.

Os trabalhos apresentados em Gráfica Política de Izquierdas conformam o espaço das expressões gráficas “da luta, do trabalho, da liberdade, da solidariedade, do direito à dissidência, da revolução e dos direitos humanos” – o que se torna cada vez mais importante, num mundo polarizado no qual supostas democracias têm assumido posturas muito próximas às verdadeiras ditaduras.

 

INDIJ, Guido (ed.). Gráfica Política de Izquierdas. Argentina: 1890-2001. Buenos Aires: La Marca Editora, 2006. 264pp. Ilus.

 

Apêndice

No Brasil, a UNICAMP, por meio do seu Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), abriga o Acervo Edgard Leuenroth (AEL), uma rica coleção de periódicos, panfletos, cartões postais, manuscritos, livros, folhetos e recortes de jornais do líder sindical e anarquista, cuja coleção deu origem ao ambicioso projeto que busca coletar e preservar documentos diversos sobre a história social do trabalho no país. A UNESP reúne documentos colecionados pelo Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa (CEMAP), como aqueles produzidos por organizações de esquerda do Brasil, sobretudo do movimento operário brasileiro, de diversos períodos, cujo espectro iconográfico abrange fotografias, cartazes, adesivos e "botons", entre outros. Além dessas, outras instituições também preservam a memória dos movimentos de luta das esquerdas no país. Quem sabe esse livro poderá inspirar pesquisas visuais que resultem em registros valiosos sobre esse tipo de memória gráfica no Brasil. (MM)